Coletivo de Fundo e Fechos de Pasto do Oeste da Bahia protestam por demarcação de terras
Trabalhadores e trabalhadoras leram carta de repúdio em evento realizado pela prefeitura de Correntina-BA na quarta-feira (03/11)
Na manhã da última quarta-feira (03), durante um evento da prefeitura de Correntina-BA para entrega de títulos de terra, foi realizado um ato de repúdio contra a omissão do Estado diante as ações discriminatórias para demarcação de terras para os povos tradicionais do Fundo e Fecho de Pasto da região, com cartazes e leitura de carta-repúdio.
Há anos as comunidades de Fundo e Fecho de Pasto vêm sofrendo com o grande aumento de grilagem e empresas de agronegócio que provocam desmatamento sem controle e, em boa parte, com autorizações indiscriminadas e ilegais do Instituto Do Meio Ambiente E Recursos Hídricos (INEMA).
Mesmo as terras que formalmente são devolutas, de domínio do Estado, e tradicionalmente ocupadas por Fundo e Fecho de Pasto, a quem a lei garante o direito de regularização, são notórias as dificuldades dessas comunidades em formalizar a posse de terras, perdendo espaço para os mecanismos de opressão vividos rotineiramente no campo. É uma situação conhecida pela Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), e pelo poder público municipal de Correntina, mas sem devida atenção ou acompanhamento.
Diante deste cenário, o Coletivo de Fundos e Fechos de Pasto do Oeste da Bahia representa dezenas de grupos e comunidades divulgou hoje uma carta de repúdio. Confira a carta na íntegra abaixo:
CARTA DE REPÚDIO
Exmo. Secretário de Desenvolvimento Rural, Sr. Josias Gomes Exma. Coordenadora Executiva da CDA, Sra. Camila Batista Exmo. Prefeito Municipal de Correntina, Sr. Nilson José Rodrigues (Maguila)
O Coletivo de Fundos e Fechos de Pasto do Oeste da Bahia representa dezenas de grupos e comunidades que cuidam e preservam o Cerrado na bacia do Rio Corrente, com seus brejos e veredas, tirando destas áreas de manejo comunitário o sustento de milhares de famílias. Junto com as comunidades Geraizeiras, Quilombolas, Indígenas e Ribeirinhas de outras bacias como o Rio Carinhanha e Rio Grande, somos nós os guardiões das últimas áreas de cerrado preservadas na região Oeste da Bahia. Sem os Fundos e Fechos e os Gerais, nosso modo de vida tradicional está comprometido, assim como estarão condenadas ao desaparecimento as nascentes que alimentam os principais rios da região que chegam no São Francisco, das quais cuidamos. Sem o Cerrado, não há água, e não há vida.
Ao longo dos anos, temos lutado contra a tomada do nosso Gerais por grileiros – vindos de outros Estados e regiões, empresas nacionais e estrangeiras do agronegócio. Os municípios das bacias dos rios Carinhanha, Corrente e Grande, pelo avanço da grilagem, estão sempre na lista dos que têm maior área desmatada em todo o país – em grande parte com autorizações ilegais do INEMA. Com muito dinheiro e influência, esses grupos têm acesso livre a autoridades do Poder Judiciário, como ficou demonstrado pela Operação Faroeste, e também a autoridades do Poder Executivo estadual, que de forma pública agem em nome dos interesses destes grupos.
Nós, os povos originários daqui, temos sido ignorados em nossas justas reivindicações. Com o apoio de organizações e movimentos parceiros, temos lutado pela demarcação e titulação de nossas terras há pelo menos quatro décadas. São terras que formalmente são devolutas, de domínio do Estado, embora sejam tradicionalmente ocupadas por nós, a quem a lei garante o direito de regularização. É uma situação conhecida pela Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), e pelo poder público municipal de Correntina.
Nossa luta não é novidade para ninguém: em 1977 Eugênio Lyra, advogado dos trabalhadores rurais da região foi brutalmente assassinado em Santa Maria da Vitória por estar indo depor na CPI da grilagem, de lá pra cá, são inúmeros os fatos que marcam nossa caminhada. Numa memória recente, do diálogo com o governo estadual, cabe relembrar que ainda em 2014, há sete anos, foi apresentada para a SDR e CDA uma síntese sobre os graves conflitos fundiários e demandas para titulação dos territórios dos Fundos e Fechos de Pasto, em reunião da então Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo. Após a promessa de realizar uma grande ação de demarcação em nossa região, a CDA voltou atrás e cancelou a proposta, por pressão de setores do próprio governo.
Em 2018, após o levante popular do povo de Correntina contra empresas do agronegócio que vinham roubando nossas águas, novas promessas foram feitas, agora com a proposta de delimitação de 40 áreas de Fundos e Fechos de Pasto, divididas em quatro blocos. Após diversas reuniões e muitas promessas, nada foi feito, e o grupo de trabalho à época conduzido pelo então Secretário de Meio Ambiente da Bahia, Geraldo Reis, não conseguiu dar solução aos conflitos socioambientais da região, tal GT, não funcionou, foi anulado, como uma medida ludibriosa para “acalmar os ânimos” exaltados e as especulações daquela época. Em síntese, de 2018 pra cá com a omissão do Estado Baiano, os conflitos socioambientais no Oeste da Bahia explodiram como rastilho de pólvora.
Desde 2010, foram executadas cinco (05) Ações Discriminatórias Administrativas Rurais só na bacia do rio Corrente (Gleba JacurutuSalobro, Gleba Arrojelândia, Gleba Salto, Gleba Vereda do Rancho e Gleba Clemente), sendo a Gleba Porteira de Santa Cruz um imbróglio que não se sabe direito o que é, com mais três (03) na bacia do rio Grande (Gleba Baixões, Gleba Caracol, Gleba Estrondo), sem que “um palmo” de terras comunais fosse destinadas as nossas comunidades, boa parte destes processos se encontram como Ações Discriminatórias Judiciais, contudo sem horizontes e perspectivas. Apenas em fevereiro de 2021, foram abertas 03 Ações Discriminatórias Administrativas Rurais, nos territórios de Capão do Modesto; Porcos, Guará e Pombas e Vereda da Felicidade. A demanda é muito maior do que esses três territórios, e desde então nenhuma outra foi iniciada. Para completar o descaso e falta de respeito com o nosso povo, o trabalho da Comissão Especial responsável por estes processos foi interrompido sem explicações. Desde então, não respondem aos contatos das representações comunitárias, fingem que não existimos mais!
O que está acontecendo, senhor Secretário Josias Gomes? O que está acontecendo, senhora Coordenadora da CDA, Camila Batista? Quem ordenou a paralisação dos trabalhos? Porque não respondem aos contatos e não dão sequer acesso aos processos que, afinal, são do nosso interesse e dizem respeito às nossas vidas?
Não queremos crer que tudo isso se dá em razão do governador do estado ter recebido em seu gabinete fazendeiros e, neste momento, estar com eles em viagem internacional, justamente aqueles que seriam afetados pelo andamento das ações discriminatórias em Correntina, pois não tem como sustentar seus títulos grilados de forma grosseira nos cartórios da região.
Esta omissão, que gostaríamos de entender o motivo, traz consequências graves para nós, fecheiros e geraizeiros, mas também para outras comunidades tradicionais. Desde 2014, ou mesmo antes, os grileiros têm feito cadastros ilegais junto ao INCRA (SIGEF) e INEMA (CEFIR/CAR), especialmente, para grilagem verde, aproveitando que nossas áreas são conservadas por nós. Diretores das associações comunitárias são agredidos, ameaçados de morte a todo o tempo, denunciam às autoridades policiais e nada acontece; continuam as perseguições. Em outros municípios, como Formosa do Rio Preto, outros ataques contra posseiros e comunidades seguem acontecendo enquanto o órgão fundiário se silencia – a exemplo dos recentes ataques armados de milícias rurais de grileiros às comunidades Geraizeiras do Arroz e São Marcelo.
Onde vamos parar? Vai ser preciso que essas lideranças sejam assassinadas para que venha uma ação do governo? A quem este governo está realmente servindo? Onde está o governo para os trabalhadores, que tanto esperamos? A distribuição de títulos individuais, embora importantes, não vai resolver o problema fundiário nem da região Oeste. Se os fecheiros e geraizeiros deixam de cuidar das nascentes dos rios Correntina, Arrojado, Formoso, Guará, Santo Antônio e do Meio dentre outros, haverá água para os pequenos produtores que estão rio abaixo?
Nós, o povo de Correntina e região já entendemos que a resposta é NÃO, e assim ficou demonstrado com sua força nas manifestações de novembro de 2017, que desaguaram na audiência pública onde mais uma vez colocamos nossas reivindicações. Por tudo isso, senhor prefeito, senhora coordenadora e senhor secretário, estamos aqui mais uma vez para relembrar ao governo da Bahia que nós EXISTIMOS! E não seremos ignorados enquanto tivermos força e coragem para lutar.
Não assistiremos sem ação os acordos de gabinete destruírem nossos direitos. Exigimos a retomada imediata das ações discriminatórias que estão realizadas, com a demarcação de TODO o território reivindicado, incluindo as que foram ilegalmente cadastradas e registradas em cartório. Exigimos que novas ações sejam abertas, nos outros “blocos” de territórios que já estão identificados pela CDA. E por fim, exigimos que a SDR e CDA promovam ainda neste mês de novembro uma audiência com todos Fundos e Fechos de Pasto da Bacia do Corrente e Geraizeiros da Bacia do rio Grande, para que preste conta das promessas feitas e até agora não cumpridas.
Nos colocamos ainda à disposição para reunião com o Governador do Estado, para que ele ouça das próprias comunidades a verdade sobre a nossa realidade, e não apenas receba supostos empresários de fora do estado e do país, dando as costas ao seu próprio povo.
Viva a luta dos Fundos e Fechos de Pasto e Geraizeiros! Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida!
Correntina, 03 de novembro de 2021.
Texto e imagem: CPT-BA