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O apoio do Banco Mundial à titulação ou “regularização” de terras no estado do Piauí

Em 21 de dezembro de 2015, o Banco Mundial aprovou um empréstimo de 120 milhões de dólares ao governo do Piauí. O contrato de empréstimo para o projeto “Piauí: Pilares de Crescimento e Inclusão Social” (projeto nº P129342) foi assinado em 27 de abril de 2016 e o projeto será executado até 31 de dezembro de 2020 com o objetivo declarado de beneficiar os “pobres das áreas rurais do estado por meio da ampliação e da melhoria dos serviços nos setores de educação, saúde, agricultura e recursos hídricos.”

Um dos componentes do projeto é a regularização de terras no Piauí. O subcomponente 1.4 do empréstimo visa o “fortalecimento dos direitos de propriedade de bens imobiliários”, através do apoio à implementação do Programa Estadual de Regulamentação de Terrenos do Piauí. Este programa é estabelecido na Lei estadual n. 6.709, de 28 de setembro de 2015, sobre a regularização da propriedade e colonização de terras pertencentes ao estado do Piauí, que tenham sido caracterizadas como vagas. A lei é acompanhada pelo Decreto 1.634/2015, que estabelece como objetivos, até 31 de dezembro de 2019, a emissão de 11.000 títulos de propriedade para agricultores e agricultoras familiares, a regulamentação de seis comunidades quilombolas e a privatização, através da venda e locação, de 4 milhões de hectares de terra.

O projeto do Banco Mundial fixou o alvo de 5.000 títulos de propriedade de terras a serem entregues até o final de 2019. Além disso, o projeto visa a emissão de títulos de terras para oito comunidades quilombolas.

O Banco Mundial justifica o seu apoio ao programa de regularização com base no argumento de que a falta de títulos formais de terra é um grande obstáculo para aumentar a renda das comunidades rurais em um contexto de pobreza rural generalizada no Piauí. De acordo com os documentos do projeto, a “regularização da terra através da provisão de títulos de posse da terra para pequenos agricultores contribui para a inclusão social e produtiva porque a terra: (i) é o principal meio para o cultivo de culturas que podem melhorar a segurança e a qualidade dos alimentos, reduzindo assim a vulnerabilidade à fome e gerando meios de subsistência; (ii) constitui o principal veículo para investimento, gerando acúmulo de riqueza e transferência de recursos entre gerações; e, (iii) fornece aos agricultores uma rede básica de segurança social. Além disso, a propriedade formal da terra facilita o acesso ao crédito e a linhas de financiamento subsidiado, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR).”

De fato, o Banco Mundial tem apoiado a regularização e formalização de terras no Piauí há muitos anos. O projeto atual foi aprovado junto com outro empréstimo de 200 milhões de dólares (“Piauí: Inclusão Produtiva e Social”, projeto nº1414981) com componentes similares e que foi finalizado em 31 de agosto de 2017. Ambos os empréstimos/projetos são a continuação de um projeto anterior de 350 milhões de dólares (“Piauí: Crescimento e Inclusão Verdes”, projeto n. P126449, aprovado em 6 de março de 2012 e encerrado em 30 de março de 2013), que também incluiu a emissão de títulos de posse como um dos seus pilares.

De acordo com o Relatório de Status e Resultados de Implementação mais recente do Banco Mundial (datado de 17 de janeiro de 2018), até o momento, 258 beneficiários receberam títulos registrados de terras sob o atual empréstimo, enquanto outros 336 beneficiários estavam no estágio final de recebimento de seus títulos antes do final de 2017, chegando, portanto, até agora a um total de 694 beneficiários com um título de terra registrado. Isso significa que o objetivo do projeto de 2.000 títulos de terra emitidos em 2016 e 2017 (cumulativo) não foi alcançado. De acordo com o mesmo relatório, atualmente são 7.937 pedidos apresentados por pequenos agricultores para titulação de terras por meio do programa estadual e oito equipes estão no local para “executar atividades de regularização de posse de terras”. Cinco comunidades de quilombolas receberam títulos de terra no projeto.

Grilagem de terras e destruição ambiental no Piauí

O projeto do Banco Mundial intervém em uma região que atualmente enfrenta altos graus de grilagem e conflitos de terras, os quais estão ligados à expansão de monoculturas na região conhecida como MATOPIBA e ao Cerrado brasileiro de forma mais geral. Pesquisa extensa realizada por organizações da sociedade civil e uma missão internacional de pesquisa e verificação de fatos, realizada em setembro de 2017, documentam severos impactos nas comunidades locais e no ecossistema da região. A perda de terra, a insegurança alimentar, as disputas sobre o uso da água, a poluição de fontes aquíferas, a violência contra as lideranças comunitárias, o desmatamento e a perda de biodiversidade através da destruição do bioma Cerrado estão entre os impactos mais críticos. A pesquisa também documentou os laços entre o processo de grilagem em curso e atores do setor financeiro transnacional – em particular de fundos de pensão dos EUA e Europa.

A expansão das monoculturas de soja no Cerrado levou a uma explosão dos preços da terra e de sua especulação. Empresas e investidores realizam negócios com terras, cercando áreas sem título de propriedade e criando aí fazendas que são, então, vendidas. A fraude e a falsificação de títulos de terra são comuns (grilagem), pois os grileiros de terras procuram legalizar sua apropriação de terras, inclusive daquelas que têm sido ocupadas e utilizadas por comunidades locais ao longo de gerações.

Proteção e asseguração do direito à terra das pessoas ou legalização de grilagens?

Nessa situação, o projeto do Banco Mundial apresenta o alto risco de gerar uma maior deterioração da situação, legalizando a apropriação ilegal e/ou ilegítima de terras comunitárias e desencadear mais desapropriações e destruição ambiental. Os documentos do projeto reconhecem que “os altos preços globais das commodities têm impulsionado a exploração do bioma Cerrado para a agricultura comercial, gerando uma ocupação não organizada de grandes áreas de terra, frequentemente com pouca ou nenhuma regulamentação. […] Comunidades vulneráveis que habitam terras públicas, incluindo os assentamentos de Quilombola e os pequenos proprietários envolvidos em agricultura familiar, correm o risco de perder alguns ou todos os seus direitos territoriais caso suas ocupações não forem regularizadas. Além disso, a ocupação desordenada e ilegal de terras rurais (grilagem) é comum, especialmente no Cerrado, gerando prejuízos fiscais e outros efeitos sociais, ambientais e econômicos adversos.”

Segundo o Banco Mundial, a regularização da ocupação das comunidades locais através do Programa Estadual de Regulamentação da Propriedade da Terra deve protegê-los contra a perda de suas terras. No entanto, o projeto não contém salvaguardas concretas para assegurar efetivamente os direitos de posse das pessoas contra a expulsão por parte do agronegócio e especuladores locais e que garantam que a desapropriação de comunidades no contexto descrito acima não seja formalizada. Também não possui foco claro nas comunidades de pequenos agricultores, sendo que inclui explicitamente “agricultores de médio e grande porte” no processo de regularização. O projeto ainda (implicitamente) concentra-se na emissão de títulos individuais, sem considerar devidamente outras formas coletivas de posse, as quais são comuns em muitas comunidades do Cerrado. Finalmente, o projeto contribui para a privatização de terras públicas em um ecossistema/bioma muito sensível, o qual esse encontra altamente ameaçado devido ao contínuo desmatamento.

Como tal, o projeto não encerra as lacunas da legislação estadual do Piauí sobre regularização da terra e não está alinhado com as Diretrizes das Nações Unidas sobre Governança Responsável de Terras, Recursos Pesqueiros e Florestais (Diretrizes da Posse). De fato, enquanto a lei estadual menciona a observância da função social da propriedade (artigo 14, §§ 1 e 2) e a preservação do meio ambiente como critério de regularização da propriedade e estipula ainda a necessidade de conciliar a regularização das terras públicas estaduais com o plano nacional de reforma agrária (art. 28), ao mesmo tempo em que prioriza a atribuição de terras públicas com os objetivos de assentar trabalhadores rurais e de proteger ecossistemas naturais (artigo 32), não estabelece um quadro regulamentar claro para governança de terras, recursos pesqueiros e florestais, o qual priorize a realização do direito humano à alimentação e outros direitos humanos dos grupos marginalizados (parágrafo 1.1 das Diretrizes da Posse). A lei também carece de uma abordagem de igualdade de gênero, que é um dos principais princípios da governança responsável (Diretrizes da Posse, parágrafos 3B4, 4.6, 5.3, 5.4, 5.5). Além disso, não possui uma abordagem participativa por parte dos grupos mais afetados no processo de identificação dos legítimos direitos de posse das comunidades tradicionais que vivem em terras públicas (ver Diretrizes da Posse, parágrafos 7.3 e 8.2), a qual leva em consideração as relações de poder existentes (ver Diretrizes da Posse, parágrafos 3B6 e 9.9).

Além disso, a lei (implicitamente) prefere os direitos de posse sob a forma de direitos de propriedade individuais/familiares quando se trata de regularizar a propriedade das comunidades tradicionais e não declara explicitamente a necessidade de reconhecer as formas coletivas e tradicionais de posse de terras, de recursos pesqueiros e florestais. As Diretrizes da Posse enfatizam a necessidade de proporcionar o reconhecimento apropriado e a proteção de todos os direitos de posse legítimos, inclusive os legítimos direitos de propriedade dos povos indígenas e de outras comunidades com sistemas tradicionais de posse (parágrafo 9.4). Elas também sublinham especificamente a necessidade de os Estados reconhecerem e protegerem as terras administradas coletivamente e seus sistemas de uso e gestão coletivos, inclusive nos processos de cessão (parágrafo 8.3).

Pare o processo de regularização do solo no Piauí

Tendo em conta a situação crítica no Cerrado e o risco de formalizar a desapropriação de terras através do processo de regularização da terra, a Procuradoria da República no Piauí recomendou formalmente em 18 de dezembro de 2017 que se suspendesse imediatamente a aplicação da lei estadual nº. 6.709 / 2015 até que as medidas tenham sido tomadas para garantir a possibilidade de titulação coletiva para as comunidades e garantir seu consentimento livre, prévio e informado sobre atribuições de terra. A Procuradoria da República no Piauí recomenda ainda identificar e documentar as formas de posse e utilização de recursos naturais das comunidades tradicionais locais através de um estudo antropológico, bem como por meio de consultas com as comunidades afetadas. A recomendação sublinha a importância de consultar as comunidades afetadas sobre como suas formas tradicionais de posse e uso de recursos devem ser protegidas.

A recomendação da Procuradoria da República no Piauí é dirigida ao INTERPI (Instituto de Terras do Piauí), bem como ao Banco Mundial, convidando o último a “adotar medidas para avaliar e corrigir os efeitos negativos do programa financiado pelo Banco Mundial para regularização de terras no Estado do Piauí, a fim de prevenir e remediar as violações dos direitos à terra dos povos e comunidades tradicionais.”

A recomendação da Procuradoria da República no Piauí apoia as demandas de oito comunidades afetadas dos municípios de Gilbués, Santa Filomena e Bom Jesus, que – em uma carta enviada à Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) em 11 de dezembro de 2017 – pediu o estabelecimento de uma mesa redonda de diálogo para avaliar o processo de regularização de terras e discutir seus objetivos, incluindo a importância do registro coletivo de terras comunitárias. As comunidades propõem que esta mesa redonda seja composta pela Vara Agrária da Justiça Estadual, INTERPI e representantes das comunidades e com a participação do Ministério Público Estadual e Federal, do Banco Mundial, da Assembleia Legislativa do Piauí, FAO e grupos de apoio da sociedade civil.

O Banco Mundial não respondeu à carta da Procuradoria da República no Piauí. De acordo com relatos da mídia, o governador do Piauí anunciou recentemente que a implementação do programa de regularização fundiária continuará.

Acesse a nota enviado ao Banco Mundial.

Foto do destaque: Rosilene Miliotti/FASE

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